quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Histórias "do bem" e "do mal"

Concordando e citando o professor Leandro Karnal em sua entrevista no programa roda vida (https://www.youtube.com/watch?v=JmMDX42jOoE) eu não temo a maldade dos grandes homens (grandes facistas da história da humanidade), temo de verdade a maldade do "pequeno homem", do cidadão de bem do dia a dia.

Quando comecei nesta vida de ciclista harduser entrei neste mundo cheio de "sabedoria", cheio de verdades próprias que eu acreditava que deveriam ser de todos.

Uma delas é crer que determinadas leis e códigos são seguidos à risca, como por exemplo o nosso Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Eu entendia que o "ciclista consciente" era aquele que seguia à risca o que estava preconizado ali. Tão crítico quanto crer nisso era crer que eu conhecia todo o CTB a ponto de poder vociferá-lo.

O tempo me fez ver que só neste pequeno micromundo já cometia várias ingenuidades:

- Crer que as minhas verdades servem para todos (eu sei que não é assim, mas algo ruim em mim sempre tenta me fazer esquecer isso.)
- Crer que "eu já sei" (também já sei que não sei...)
- Crer que é possível mudar o mundo seguindo sempre e apenas as regras impostas por esse mundo...

Tudo isso para narrar 2 episódios pelos quais passei nos últimos dias e me marcaram tanto que não consegui não descrevê-los aqui.

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1) Eu pedalava no contrafluxo de uma rua de pouco movimento, em um horário de pouco movimento. Este caminho é padrão, porque para fugir dele eu preciso pegar uma rua de muito movimento e aumentar meu trajeto em cerca de 1 km.

Ou seja, foi feito para os veículos motorizados.

Num determinado ponto um motoqueiro que queria ultrapassar um carro percebeu que ia passar rente a mim (bem rente!), ele já tinha me visto de longe, mas em vez de reduzir milésimos de segundos jogou a moto sobre mim acelerando forte para "me assustar" e me imprensou. Foi tenso. Fosse eu um ciclista inexperiente certamente teria causado um sério acidente,

Mas ele precisou parar no semáforo poucos metros à frente. Ato contínuo, eu fui ao seu encontro, o abordei e o diálogo foi mais ou menos o seguinte:

- Cara, o senhor jogou a moto em cima de mim, acelerou para me assustar, me imprensou, eu podia ter caído feio. Tudo para vc ficar parado aqui no semáforo? Por favor, quando você cruzar por um ciclista ou um pedestre, tome cuidado com ele, ok?
- Pô você estava na contramão, sabia que pelo CTB você está errado?
- Companheiro, mesmo concebendo que eu poderia estar errado você entende que isso lhe dá o direito de atentar contra minha vida? Ou seja, você me viu ali fazendo algo que você provavelmente faz com frequência, mas por crer eu estava errado e você certo, você tinha o direito de me abordar, julgar e punir? Ou seja, você é o agente da lei, o juiz e o carrasco?
- Pô você estava na contramão, você conhece o CTB?
- Sim, eu conheço o CTB, parece que você não ouviu ou não entendeu o que eu disse. Pelo menos você poderia tomar cuidado quando cruzar com um ciclista? (Desta vez eu fui bem enfático)
- (baixando a voz e a cabeça) Ok... (depois que eu dou as costas) Mas você estava errado...

[...]

Comentário: Apesar de "defender o CTB" ele o estava desrespeitando, pois nele, o ciclista tem prioridade sobre a moto e portanto deve ser respeitado. Em outras palavras, o motoqueiro deve zelar pelo ciclista, não tentar "educá-lo à força".

Emfim, ele queria que a "lei fosse seguida" ou queria apenas "ajustar a lei para ele"?

Mais: se se está questionando o fato de eu ter pedalado no contrafluxo, por hora vou apenas dizer:
  • O nosso código de trânsito e as nossas cidades foram feitos e concebidos para quem se desloca em veículos motorizados; Muitas cidades do mundo que mudaram este paradigma (como Paris, Amsterdã, Copenhagem etc.) passaram a compreender porque os ciclistas andam no contrafluxo, estas cidades passaram a "permitir" isso. Em outras palavras: o ciclista pedala no contrafluxo porque as ruas só foram concebidas para quem está andando num veículo motorizado, pedala porque não há infraestrutura desenhada sob a ótica dele.
  • Apesar de tudo o mesmo CTB prevê que seja possível que o ciclista pedale no contrafluxo. Artigo 58: Parágrafo único. A autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via poderá autorizar a circulação de bicicletas no sentido contrário ao fluxo dos veículos automotores, desde que dotado o trecho com ciclofaixa.
  • ;-)
  • Há uma grande diferença entre deixar de seguir uma regra que está no CTB por "infringir a lei" e por "desobediência civil";
  • As leis e as sociedades mudam de acordo com a demanda das pessoas, não o contrário. Ou seja, se não "desenharmos" a demanda por uma rua que privilegie as pessoas se movendo com a força de suas pernas, o poder público JAMAIS irá criar infraestrutura para elas, pois alegarão sempre que "não há demanda".
  • Aqui indico vários links que tratam dos temas "Cidades para pessoas", "Pedalar no ontrafluxo" etc.

Cidades para pessoas
Manual - bicicletas no contrafluxo
Fluxo e sentido
Pessoas mudam cidades
Pedalando em Paris
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2) Numa travessia no centro da cidade (Rio de Janeiro) depois de muitas obras, muitas faixas de pedestres e semáforos mudaram de lugar.

Por padrão, todos os pedestres vem pela Rio Branco e nos cruzamentos o natural é seguir em frente (na verdade a tendência de todos os pedestres é - naturalmente e por motivos óbvios - procurar sempre o caminho mais curto).
Mas como os motoristas de carros já sofrem muito (coitados) e precisam ser bajulados (e os pedestres não sofrem nada e precisam ser esquecidos) o poder público apagou as faixas de pedestres onde eles passam, colocando-as lá na frente, de forma que o ser que vem andando precisa fazer um belíssimo zigzag para deixar os motoristas bem confortáveis.

É mais ou menos assim (perdoem pelo desenho tosco):


O pontilhado amarelo é o caminho tortuoso que o pedestre deve seguir sob a ótica de quem planeja as ruas. O pontilhado vermelho o caminho que o pedestre deseja e segue. A linha rosa é o trajeto livre dos carros.

Pois bem, eu estava com minha companheira atravessando pelo "caminho vermelho", o semáforo estava fechado para os carros, era noite e já com muito pouco movimento.
No entanto um senhor que vinha dirigindo pela rua e já tinha visto o semáforo fechado para ele, nos viu atravessando ali e continuou seguindo, jogando o carro sobre nós. Eu ameacei não parar e ele continuou jogando o carro sobre nós.

No que eu reclamei ele disse "a faixa de pedestre é ali, vocês estão errados!". E parou a dois metros de nós.

[...]

Para ilustrar a necessidade dos pedestres em contraposição ao "planejamento" urbano, uma imagem 'batida":


Comentário: Apesar de ele entender que "o pedestre tem que atravessar na faixa bla bla bla", é preciso entender - exatamente como lá em cima - que o pedestre tem prioridade SEMPRE! Ou seja, todos no trânsito devem zelar por ele.

Emfim, mais uma vez ele queria que a "lei fosse seguida" ou queria apenas "ajustar a lei para ele"? Um outro agravante na história (na verdade, em ambas) é que ele estava reduzindo para para no semáforo, quando parou o fez a poucos metros de nós. Ou seja, eu queria mesmo era "dar uma lição" na gente.

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Tenho certeza que estes episódios acontecem diariamente em nossas ruas do Rio de Janeiro. Posso inferir também, baseado em muitos exemplos, que ambos devem se julgar cidadãos de bem (pois querem "aplicar a lei sobre os infratores", risos).

Para não me estender mais no artigo, deixo no ar o pensamento e a "provocação": Qual é o "bem" e o "mal" que queremos para nós e os outros?

Em tempo, sugiro ler também: Uma imagem para pensar nossas cidades

Até o próximo...

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